Ave César!

 

Louco, malcomportado, escandaloso, imprevisível. E genial. Assim é João César Monteiro. A imagem e seme­lhança de João de Deus. Ou vice-ver­sa. A sua «Comédia de Deus» aí está. O «JL» faz a crítica do filme (ler pág. 27) e esboça a figura do cineasta Fora da lei. De toda a lei que regula a moral e os bons costumes. E dita a conveniência das boas maneiras e as notas de bom comportamento. É um dos que não acer­tem na vida. Ou se desacerta do carreiro da vidinha sem nada que se lhe diga. Peca por gula generalizada. A sua medida é o ex­cesso e não está meias medidas. Escandaliza, choca as almas pacatas, incomoda os poderes. Diz o pior nos momentos menos oportunos. Conquis­tou inimigos mortais e cautelosos receios devidos a quem carece de bom raso ou mesmo de juízo. Mas assiste-lhe a genialidade. Em soda a sua brutalidade e esplendor.

«Eis um dos casos que nos fazem reflectir sobre as relações, promíscuas, entre génio e loucura» - afirma Vítor Silva Tavares. «Claro que o próprio também não sabe desatar o nó: do zero ao infinito e vice-versa ,viaja a uma velocidade incompatível com a pauta da nossa morte diária»

O caso é, evidentemente, João César Monteiro. «Vejo-o como um génio. O único que conheço no sentido de alguém que se ultrapassa a si próprio» - adianta Manuela de Freitas. E, claro, sublinha «É um louco, muito difícil de aturar. Já nos zangámos muitas vezes para sempre.»

Mas a um génio todo se perdoa. «Ele faz da coisa mais sórdida, mais reles um acto de poesia» - prossegue a actriz. Pena que a nossa sociedade tanto careça de sentido poético. Talvez por isso, César seja um inadaptado. Nos seus filmes, dá-nos a ver «o visível da nossas vida, mas também o invisível que não compreendemos», conforme frisa Manuela de Freitas. E acrescenta

«Parece-me que ele só podia ser português. As 'Recordações da Casa Amarela' é genial. Só um português o podia fazer. Aquilo é o que nós somos, para o melhor e para o pior».

Há coisas que são «abomináveis». Ele faz filmes para o mostrar. E os filmes seguem uns aos outros, na lógica da passagem dá «abominação ao sagrado». E «o sagrado é o cinema ao fim e ao ca­bo», conforme afirmou em entrevista ao «JL», em 1992. E se não fosse o cinema, João César Montei­ro seria um «caso de polícia». Ele próprio assina esta declaração que talvez granjeie muitos subscri­tores.

«Apanhado em flagrante delito de Vida Plena» o João César seria um caso de polícia ou manicómio senão fora a obra – o espelho, a espada - que o compensa dessa irremediável condição. Ou mal­dição» - diz Vítor Silva Tavares. E junta: « Lu­xurioso, megalómano, herético, escatológico, asceta, abjecto, ei- lo piolho e arcanjo a confundir-nos o modo higiénico - isto é, asséptico e conformado, de estar.»

Vítor Silva Tavares conhece César Monteiro há uns bons anos e reconhece que o comportamento do cineasta se tem radicalizado e exacerbado nos últimos tempos. Consequência da própria «mes­quinhez» do nosso meio cinematográfico. «César tem um absoluto radicalismo ético perante o cinema entendido exclusivamente como arte poética» - acentua o editor, não deixando de observar.«Em tempo de poetas-bibelot, administradores de amabilidades, ele nunca deixou de se afirmar, radi­calmente, como o poeta do cinema português –o 'Rimbaud' visionado por Fernando Lopes desde a hora primeira»..

 

LOUCO AJUIZADO

 

Com conhecimento de causa, Augusto Abelaira também realça « a  ponta de génio e de loucura» de César.«Conheceram-se á mesa de Carlos de Oliveira, com quem César Monteiro manteve uma re­lação intensa - em «A Comédia de Deus», lá aparece o retrato do poeta e escritor que o cineasta considerava como pai. Mas Abelaira ressalva que a « loucura» de César é sobretudo evidente ao nível da criação. No convívio pessoal, sempre lhe pare­ceu« muito ajuizado». Talvez por contágio de Car­los de Oliveira. E adianta:« É engraçado conversar com ele».

Desfiaram muitas conversas. Também sobre os filmes que César ia fazendo. Abelaira chegou mes­mo a colaborar vagamente, Gomo sublinha, em «À flor do Mar». Assistiu às filmagens e pôde então ver o peculiar método de trabalho do cineasta. Naturalmente, um pouco louco, está de ver. Recorda que, sem aparente ligação imediata, César fazia soar Wagner alto e do alto, enquanto filmava uma cena no fundo de um poço. Mas também as « fúri­as que todos perdoavam compreensivamente ».«Se fosse comigo» - adianta Abelaira - «acho que ficava magoado».

Ele  fez, alias, vários apontamentos de actor em fil­mes de César. Inclusivamente, em Recordações da Casa Amarela que não apreciava particularmente. Mas essas participações foram sempre cortadas. Abelaira, que não apreciava par­ticularmente o abra  anterior de César Monteiro, fi­cou, de resto, «muito surpreendido» com «Recordações da Casa Amarela». «É um grande filme - sublinha.«Fiquei seu admirador». Uma admiração extensiva à escrita do cineasta. Cita, a título de exemplo, as « terríveis cartas» que de vez era quando manda para os jornais. Nas páginas da re­vista «& Etc.», começou aliás, César Monteiro, por afiar a língua e a escrita em inconformáveis, como agora é bem dizer-se, críticas de cinema que provocaram grande incómodo e acesa polemica junto dos seus pares.

Também João Botelho acha que César «escreve maravilhosamente ». Mas não só. «É uma pessoa cheia de talento que faz muitos bons filmes há mu­ito tempo» - diz ele. E acrescenta «Sempre fil­mes imprevisíveis que, neste momento, encontraram quase uma coexistência entre  a vida e a personagem, o que lhes dá uma grande verdade e sinceridade».

Vítor Silva Tavares di-lo por outras palavras: «Tal como o Ubu de Jarry também o personagem João de Deus se apossa de João César, a ponto de indistinção. Estão ambos num só, possessos, incompatíveis com a 'ordem' natural das coisas. Neste plano, torna-se impossível a convivência: ou ficamos aquém, ou ele(s) se escapa(m) sempre para intolerável.»

Voltando à escrita João César Monteiro pô-la em dia, em 1974,com um livro publicado na «& Etc.» que reunia as suas feras crónicas cinematográficas. Chamava-se a obra «Morituri Te Salutant», na boa tradição romana. Que assim era a saudação dos gladiadores a César antes do circo começar. E o do César Monteiro já tinha pegado fogo.

 

O CORPO AO MANIFESTO

 

A Figueira da Foz via nascer este César no segun­de mês do ano de 1939. A sua infância foi «ca­prichosa e bem nutrida», conforme a certidão la­vrada por seu punho e publicada no referido li­vro. Na família. dominada pelo «espírito, cha­memos-lhe assim da I República», abundavam os «dichotes anticlericais. Mas, por bizarria, o pai de César Monteiro terá desejado ama carreira eclesiástica para o filho. Este. porém, carecia em absoluto de tal vocação. Aos 15 anos, veio para Lisboa para poder prosseguir a sua «medíocre odisseia liceal », ainda conforme as suas palavras. Frequentou o Colégio Moderno de onde acabaria por ser expulso «ao contrair perigosíssi­ma doença venérea».

Depois da morte do pai e achando-se sem um «chavo», João César Monteiro viu «chegada a hora de dar o corpinho ao manifesto». Teve vários empregos e, no inicio dos anos 60, encontrou Seixas Santos que teve a «bondade» de lhe ensinar «um pouco do muito que sabe de cinema». Traba­lhou como assistente de Perdigão Queiroga. Com uma bolsa da Gulbenkian, frequentou a London School of Flim Tecnique  Por aquela escola, nunca terá passado «aluno tão mau», em seu dizer. Os 60 iam a meio quando César Monteiro ensaiou uma primeira tentativa daquela que seria a sua pri­meira longa-metragem, «Quem Espera por Sapa­tos de Defunto». Na época tomou--se de amores pelos «Verdes Anos», de Paulo Rocha, e pelo «Belarmino», de Fernando Lopes. Com este tra­vou-se de amizade.

 

POETA DA IMAGEM

 

Foi com uma curta metragem sobre Sophia de Mello Breyner Andresen que João César Monteiro se estrearia no cinema. .«Um filme de um apuro, de uma qualidade de imagem e de estruturação que ele dedicou a Dreyer e que tem algo da concisa perfeição da obra de Dreyer», como salienta a poe­tisa.

«César Monteiro é um verdadeiro artista. Em alguns dos seus filmes, sobretudo os realizados há alguns anos atrás, há uma grande irregularidade. Foram feitos com dificuldades de toda a espécie» - acrescenta Sophia. «Mas, aqui e além, surgem algumas das mais belas imagens que já foram filmadas. Lembro-me da mágica aparição de um barco que avança para nós, tendo à proa uma ra­pariga com uma guitarra nos braços ,guitarra que foi buscar ao fundo do mar. Lembro-me de César, vestido de frade, a dançar à roda de uma fogueira. Ele é um poeta da imagem. Um homem em que existe, simultaneamente, a luz da imaginação e a luz da composição.

Ao longo dos anos 70 César Monteiro realizaria oito filmes, entre eles: « Fragmentos de um Filme- ­Esmola», «Que Farei Eu com Esta Espada?»,«0 Amor das Três Romãs»,«Os Dois Soldados» e «A Mãe».A abrir a década de 80, daria ver «Silvestre». Maria de Medeiros estreou--se nesse filme, contracenando com Luís Miguel Cintra que César Monteiro lançara no cinema, em «Quem Espera por Sapatos de Defunto», no início dos aos 70.

Manuela de Freitas também entra nos filmes de César, desde 1972, «É o realizador com quem mais gosto de trabalhar» - afirma. «Ele tem um enorme respeito pelo que é um actor, o que não acontece com muitos cineastas portugueses».Cla­ro que nem sempre as coisas correm como entre Deus e os anjos. E por vezes, o que o cineasta exige dos actores é de extrema violência segundo a actriz. «É difícil suportar as suas loucuras. Por i­sso, digo muitas vezes às jovens actrizes que não se assustem. Porque têm que se convencer que estão a trabalhar com um génio e um poeta. Isso tem o seu preço a  pagar» - comenta.

A figura de «doido varrido» de César chega a provocar algumas reacções de «falta de respeito» por parte de alguns técnicos e actores, conforme adianta ainda Manuela de Freitas. «Apesar de um enor­me rigor, há no César uma margem de improvisação que faz com seja imprevisível, transcendente e de uma tal criatividade que constituí em desafio à nossa capacidade de repre­sentar» - conclui.

Com «Recordações da Casa Amarela», João César Monteiro ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza, em 1989. Tomar-se-ia cliente dos galar­dões desse festival. Era 1992, recebeu o prémio da Critica Italiana pel' « Último Mergulho» e, desta feita, mereceu o reconhecimento do Grande Prémio do Júri com «A Comédia de Deus». Um pal­marés que impõe respeito. Hão- de convir. Como diz Manuela de Freitas:« Pela árvore se conhecem os frutos.»

Maria Leonor Nunes

 Publicado no “ Jornal de Letras” , 17 Janeiro 1996