O filme de João César Monteiro «À Flor do Mar» é paradigmático de um certo estado de coisas do cinema português. Realizado entre 1985 e 1986, antestreado na Cinemateca Portuguesa em Outubro de 1986, acabou por ficar na prateleira, sem encontrar espaço para penetrar no circuito de distribuição comercial. Um inédito portanto. E já sem grandes possibilidades de estrear nas salas de cinema. Recorde-se que «Recordações da Casa Amarela», filme que João César Monteiro dirigiu depois deste «A Flor do Mar») já foi apresentado no circuito comercial, tendo mesmo conseguido uma boa "performance", mantendo-se por diversos meses em exibição.
É a RTP que vem colmatar esta lacuna, apresentando assim um filme inédito. Uma fita que, como algumas outras, ficou arrumadinha numa qualquer prateleira, esperando por uma oportunidade que não apareceu. Dá bastante para pensar a forma como é praticado (nas suas diversas vertentes) o cinema em Portugal.
E «À Flor do Mar» até tinha a «carta» do reconhecimento internacional como trunfo para uma estreia cá pelo burgo. Apresentado nalguns dos festivais, recebeu o prémio especial do júri do Festival de Cinema de Salsomagiore (em Itália) de 1987. Mas parece que tal não contou como certificado para a sua entrada no circuito da distribuição português. Nem sequer foi recuperado depois do triunfo (tanto critico como popular) da «Recordações da Casa Amarela», outra fita de João César Monteiro a receber- consagração internacional (prémio no Festival de Veneza de 1989) antes de chegar a Portugal.
É pois de elementar justiça a atenção a prestar a este filme. Porque João César Monteiro já provou que é um dos melhores praticantes do cinema feito por cá.
Porque a sua arte, mesmo quando recheada de elementos e citações externas, é intrinsecamente portuguesa. Traduzo: só se podem perceber integralmente estas imagens integradas na realidade social e cultural portuguesas.
Impossível de resumir ou de «alinhavar» a história deste «À Flor do Mar». Trata-se de uma fita que vive mais das emoções que só o cinema pode produzir do que de uma qualquer narrativa. Belíssima é a utilização das paisagens do sul mediterrâneo, onde o Sol acaba por ter uma tonalidade outonal, uma obra onde passa tristeza melancolia
avassaladora, feitas de ausências e saudades, de dor porque tudo o que passou, por tudo aquilo em que se acreditou mas acabou por não se concretizar. E foi fundamental o contributo de Acácio de Almeida, talvez o nosso melhor director de fotografia, exímio a pintar as paisagens de que João César Monteiro necessita. E, ainda, a belíssima prestação da actriz italiana Laura Morante, tão bela quanto comovente.
Manuel Pereira
Publicado no jornal Diário Popular a 19 de Março de 1991