Com estreia comercial marcada só para Janeiro, A Comédia de Deus, de João César Monteiro; teve no entanto uma sessão única, no Cine-Casino da Figueira da Foz (cidade de origem do realizador), na quarta-feira, uma vez que 31 de Outubro era o prazo -limite para apresentação pública dos títulos a considerar na escolha do candidato, ao Oscar para o melhor filme estrangeiro. A mesma razão pela qual Sinais de Fogo, de Luís Rocha, a estrear amanhã, tivera já uma sessão em Lisboa, a semana passada.
O DN esteve nessa primeira projecção, em território nacional, do filme distinguido este ano com diversos prémios, entre os quais o Grande Prémio do Júri, nos festivais de Veneza e de Dunquerque. Presentes também estiveram o cineasta (bastante calmo), o produtor Joaquim Pinto e umas dezenas de convidados(as), entre os quais o deputado Carlos Candal.
A Comédia de Deus, nas suas quase três horas de duração, alterna entre o registo do mais sublime lirismo e o da mais provocatória escatologia (vocabular, sonora, imagética). Pelo lado verbal, note-se, há um fascinante lado lúdico, de jogos de palavras, provérbios, rimas, que só os auditórios portugueses poderão saborear plenamente, nessa história do gerente do Paraíso do Gelado (João de Deus/César Monteiro, Max Monteiro de nome artístico), sócio duma ex- prostituta que prosperou e o tirou da miséria (Judite/Manuela de Freitas, soberba). O objectivo profissional do sorveteiro é a busca do «perfume dos perfumes», enquanto cria especialidades como o «paraíso», «vaya con diós», ou «besa-me mucho» (essa a «anedota», digamos). Mas é sobretudo a história de um velho lúbrico e obsessivo, para quem as miúdas são a primeira obsessão e a segunda parece ser um singular conceito de higiene...
Portanto, pode considerar-se A Comédia de Deus, fundamentalmente, como via artística de sublimação de fantasmas eróticos. Andropáusicos ou por lá perto. O que não quer dizer que não se esteja perante uma espantosa obra de arte. E, sabe-se, as categorias de Belo e Bem não têm que coincidir; aliás, o expressionismo criou mesmo a subcategoria do belo- horrível. .Mas A Comédia de Deus até tem imagens duma mágica beleza, como a do rosto de Joaninha (Cláudia Teixeira) vagamente reflectido numa superfície espelhada onde rolam berlindes azulados.
E este é, sem dúvida, um filme do crente João César Monteiro. Com marcas panteístas e eventualmente heréticas, decerto (as suas cerimónias e rituais, de grande erotismo, abrangem da culinária ao preambular banho de leite dado a uma menina), mas assentando basicamente na concepção da queda como etapa necessária do percurso (na via da santidade?). O talhante Evaristo, que esfola e estripa um borrego (Agnus Dei, Cordeiro de Deus, conforme a banda musical sublinha), é o mesmo que dá uma carga de pancada no João de Deus que se lhe meteu com a filha, deixando-o em estado lamentável («um santo Cristo», diria o povo), do qual sai regressado à estaca zero. Isto é, ao despojamento e à solidão totais, como no final de Recordações da Casa Amarela, cujo protagonista A Comédia de Deus retoma. Disponível, pois, para novas aventuras, no próximo filme, que já está em preparação.
Para João César Monteiro, como dizem os franceses, il faul de toul pour faire un monde. No mundo da sua comédia (esta e a anterior), que é o de uma Lisboa tendencialmente xunga, pode desprender-se a maior beleza das mais bizarras circunstâncias (como a oferta, pela filha do talhante do bairro, de um prato de coiratos para o pequeno- almoço), como podem coexistir, na banda musical, abundantes trechos de Haydn ou uma ária de Wagner (do Tristao e Isolda) com o Chupa Teresa (recorde-se que a voga do Bacalhau, para além do seu âmbito inicial, começou nas Recordações da Casa Amarela).
Formalmente, A Comédia de Deus organiza-se numa composição de planos que, por vezes, denotam largo rasgo estético e se caracteriza, sempre, pelo maior rigor, tal como os enquadramentos. Por outro lado, como já sublinhara a critica dos Cahiers du Cinema deste mês, raro será o cineasta, hoje em dia, capaz de aguentar tão longos, planos-sequência fixos que não sejam hieráticos, imprimindo-lhes movimento quer as entradas e saídas de campo quer a banda sonora. Isto não é fast food cinematográfica.
Publicado no jornal Diário de Noticias a 2 de Novembro de 1995