de João César Monteiro
Na primeira fase da sua obra, João César Monteiro filma fundamentalmente o desespero de viver, e filma desesperadamente em sucessivos gestos de provocação.
Que daí não resultem filmes apresentáveis nos circuitos adequados, é compreensível. Que este itinerário, como aquele de Garrel, em que este de certo modo se inspira (e algum Garrel ainda está presente no melhor de Veredas), não tivesse saída, era talvez bastante óbvio. Mas que filmes como A Sagrada Família ou Quem espera por sapatos de defunto morre descalço nos surgem como experiências únicas e irrepetíveis no cinema português - isto parece uma verdade incontestável. Talvez fosse natural que, entretanto, João César Monteiro se confrontasse com o universo de harmonia inadiável que é a poesia de Sophia de Mello Breyner. Mas também aí o que César Monteiro nos dá é a inadequação do seu cinema em relação à harmonia pressentida na pessoa de Sophia – e nisso reside o interesse desse aparente documentário.
A Sagrada Família é, num primeiro nível, uma acumulação de sequências em diversos registos que nunca chegam a formar um percurso narrativo. É certo que encontramos um casal, Maria (Manuela de Freitas) e João Lucas (João Perry), acompanhados por uma criança (Catarina Coelho), que é a grande energia corporal, verbal e filmica que atravessa esta obra (a criança filma o que se passa à sua volta). O casal confronta-se com os pais de Maria (Dalila Rocha e Luso Soares), numa cena extremamente interessante, em que João Lucas se coloca em cima de uma mesa com uma máscara de um porco sobre a cara. Mas o casal confronta-se sobretudo com a nudez da sua própria impossibilidade em cenas de silencioso enredamento dos corpos. Algumas imagens, uma laranja, por exemplo, para introduzir um texto de Ponte sobre a fruição das coisas, e alguns textos, como essa admirável missiva de Breton à filha, que conclui com a frase que termina aqui o filme: «Desejo que sejas loucamente amada». Follement, claro: e o filme é acima de tudo um registo das marcas dessa loucura recolhidas num espaço de clausura: uma cama (um colchão), umas persianas de madeira, que vão pontuando pela luz o gráfico de afectividade do filme. Digamos que todas estas cenas são acima de tudo uma súplica – um apelo. No mesmo emparedamento ritual de um Schroeter em O dia dos idiotas. Mas há também, e em suplemento, a memória/obsessão de um crime: um punhal, em sombra, erguido sobre a criança (e desta apenas vemos o boneco infantil colocado na parede), ou o tiro de pistola da última sequência. A destruição (do mundo, do amor, do cinema) é o pano de fundo deste filme. Há aqui, apesar da presença evidente de modelos, muito mais força e arrebatamento do que nas peregrinações delicodoces sobre a terra portuguesa a que o autor posteriormente se dedicou.
Eduardo Prado Coelho
Retirado do Livro 20 Anos de Cinema Português