CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA

 

 

SILVESTRE/ 1981

 

Um filme de João César Monteiro

 

Apesar da importância de João César Monteiro como cineasta e de Silvestre na sua obra este filme é, salvo erro, um "inédito" nesta sala. Lacuna que se preenche (finalmente) agora, na sequência de muitos pedidos dos nossos habituais espectadores. A exibição impõe-se ainda mais na medida em que dispomos duma cópia nova em que podemos apreciar de novo a beleza da fotografia de Acácio de Almeida em todo o seu esplendor, e este é um dos seus trabalhos mais perfeitos na disposição das cores que dão uma tonalidade sensual ao filme e, simultaneamente, "pintam" um cenário que corresponde à imagem idealizada dos contos populares tal como eram ouvidos pelas crianças. Aliás tal reconstrução psicológica apoia-se também nos cenários pintados, aparentemente simplistas, que têm mais a ver com esse imaginário primitivo e popular do que com as "miniaturas" medievais que formam o pano de fundo de filmes como Henry V de Laurence Olivier e Perceval le Gallois de Eric Rohmer, que poderiam ser algumas das influências estéticas de Silvestre. Mas o filme de César Monteiro está, de outro modo, muito influenciado pela pintura medieval e renascentista, de um Boticelli e de um Rafael, para que remetem alguns planos de Maria de Medeiros, enquadrados (e pintados") com especial cuidado para sublinhar essa filiação.

Quarta longa-metragem de César Monteiro, Silvestre encerra a primeira fase da sua obra, a que vem desde a curta metragem Sophia de Mello Breyner Andresen (1968), a que parte em busca das raízes culturais de Portugal e que pode afirmar-se de forma mais clara a partir da Revolução de Abril. Que Farei Com Esta Espada? é o "começo" da busca e Veredas (1975/77) o seu encontro. Veredas, aliás, é uma espécie de "movimento" que leva Monteiro às mais profundas tradições da cultura popular, busca que continua numa série de médias metragens feitas para a televisão (O Amor das Três Romãs, Os Dois Soldados, O Rico e o Pobre), e cuja meta é Silvestre, verdadeira catedral onde se reúnem todos os temas dessa cultura popular. A este filme segue-se uma "pausa" marcando À Flor do Mar o início de um novo ciclo de que o recente As Bodas de Deus é o remate. Num texto - carta "dirigido" a Carlos de Oliveira (a quem Silvestre é dedicado, e basta reler Finisterra para entender o porquê), que acompanhou a exibição do filme no Festival da Figueira da Foz em 1981, César Monteiro diz que se "O resultado, um pouco aquém das minhas expectativas, não é ainda a vergonha" "o essencial, o que tem a ver com um imaginário genuinamente nosso, está devidamente salvaguardado". Esta última afirmação parece- me inteiramente correcta, podendo-se acrescentar, inclusive, que filme algum ao longo dos cem anos da nossa cinematografia, conseguiu "captar" de forma tão "pura" esse imaginário. Muitos filmes "etnográficos" se fizeram, especialmente após o 25 de Abril, muitos deles interessantes, outros cheios de boas intenções, mas a "alma" da cultura popular, com tudo o que tem de malicioso e ingénuo, de tosco e brutal, de simplista e alegórico, jamais fora captada com tal verdade psicológica. Não no sentido da sua "reprodução" mais ou menos "oficial", mais ou menos "real", mas antes da forma como é "recebida" e "assimilada" pelos destinatários dessas histórias tradicionais: a infância. Silvestre é essa infância reencontrada no íntimo de cada um de nós, e mais particularmente daqueles cujas raízes estão ainda próximas dessas origens. As histórias que César Monteiro encena em Silvestre, A Mão do Finado e A Donzela que Foi à Guerra, fazem parte do património oral da província, e quem aí cresceu, pela voz de amas ou avós, a elas teve acesso. A beleza do filme de César Monteiro neste aspecto é que parece ter conseguido entender e recriar as "imagens" idealizadas por quem ouvia essas histórias, inclusive na sobrecarga de cor, na utilização de cenários pintados (também herdeiros dos cenários dos teatros populares medievais) e na "impressão" de "horror" que a presença "demoníaca" do personagem de Miguel Cintra deixa impressa desde o primeiro plano em que aparece, subindo a ladeira sobre um cenário projectado e trazendo com ele a tempestade e o céu vermelho. Este jogo de cores, de representações" não realistas sobre ecrã com projecção frontal (representações a que Jorge Silva Melo traz um sinal de irreverência com o seu perfil e rosto de então que evocam Woody Allen), esta exploração de cenários e a aproximação às lendas e tradições que enformam o imaginário popular, está, por sua vez, mais próximo do cinema de Syberberg, de um Ludwig e de um Hitler (e Parsifal, que é de 1982), referências que Monteiro rompe ao longo da narrativa com a introdução de cenas de caracter "bucólico" (o banho no rio, o trabalho no campo). Filme "total" Silvestre marca o apogeu de um "estilo", o término de um "olhar", que culmina nos olhos de Maria de Medeiros no plano final que a pouco e pouco se dilui no "cosmos", plano que pode evocar o começo de Dune de David Lynch mas que anuncia também a "projecção" cósmica a que a obra de Monteiro aspira na segunda fase, sendo aquele plano do "cosmos" uma imagem recorrente nos filmes seguintes (As Bodas de Deus começa, exactamente com essa imagem). Silvestre é o culminar dessa primeira fase da obra do realizador e, por tudo o que é, e o que anuncia talvez seja mesmo a sua obra prima.

 

Manuel Cintra Ferreira

 

Texto da Cinemateca Portuguesa