«Veredas» é o mais recentemente trabalho fabricado por João César Monteiro. E também o único a conhecer uma exibição comercial.
Trata-se de um filme difícil, não apenas pela complexidade do produto final proposto ao olhar dos espectadores, mas sobretudo pela dificuldade interna dos próprios temas em análise. Porque a nossa história colectiva não é redutível à linearidade de um certo discurso pretensamente didáctico.
De tudo isso nos dá conta César Monteiro, em entrevista que agora damos à estampa.
O teor de certas notícias veiculadas pela Imprensa reaccionária, que comprometem e questionam o esforço da equipa dirigida pelo realizador, foi objecto de analise, igualmente. A presença de Henrique Espírito Santo, produtor desta película, permite ainda revelar alguns meandros desta campanha.
EXTRA - «O Dia» desencadeou uma campanha contra o vosso trabalho, publicando alguns textos aparentemente comprometedores. Qual é a vossa resposta?
HENRIQUE ESPÍRITO SANTO - Tudo isso é ridículo e faz parte de um tipo de campanha que se faz contra os que rompem o «statu quo». Eu posso utilizar um local como «décor», sem que ele tenha nada a ver com as pessoas que ai vivem ou tenham vivido. Tudo aquilo podia ter sido feito no estúdio. É não perceber mesmo nada de cinema!
EXTRA - Segundo a noticia, vocês teriam utilizado as instalações sem autorização...
HES - Esta campanha já se vem desenrolando há algum tempo. Situações deste tipo são criadas para pressionar e levar à censura. Outros casos que devem ser referidos: foi proibida a utilização de certos locais, para filmar cenas de «A Fuga», corte de verba na publicidade de filmes portugueses, etc. Não é por acaso: existem pressões da direita para não se revelarem certas coisas. Mas é necessário desmascarar isto. Lamento que os nossos cineastas estejam um bocado alheados do que se esta a passar.
Em concreto, a casa não estava selada, quando lá chegamos, só o tendo sido muito depois, pela GNR. Mas as filmagens já tinham acabado. A comissão de trabalhadores tinha-nos dado autorização. Entregamos as credenciais e foi-nos permitido filmar e não me consta que tenha faltado alguma coisa.
JCM - Palma Ferreira escreveu coisas idiotas num diário e fez alusões absolutamente fantasiosas em relação ao filme. Por este andar, nós filmamos em locais públicos, por exemplo, e arriscamo-nos a que um qualquer transeunte focado pela câmara venha protestar e exigir reparações...
EXTRA - Parece estranho que apenas agora, com o filme já em exibição se venham levantar questões que, certamente, já eram conhecidas há muito...
HES - O caso já vem de trás. Nós tínhamos conhecimento de todos os documentos que foram agora publicados. Essas cartas foram dirigidas ao IPC, com exigência de visionamento do filme. Nós recusámos e a comissão administrativa foi solidária connosco. Em 76, uma alta patente militar - Melo Egídio -, dirigiu ao dr. Almeida Santos (na comunicação social, na altura) um relatório em que se citam estes dados, mas redigido num tom altamente denunciador, chegando a afirmar-se de mim, que moro na rua tal, número e outros dados pormenorizados. Isto é inaceitável!
De qualquer modo, sempre achamos tudo isto muito idiota e muito ridículo. E o trabalho continuou.
JCM - A mim, parece-me que é uma óptima publicidade para o filme. Aliás, já há uns tempos que .pensáramos utilizar todo este material, no lançamento do filme. Mas como o Alcobia teve um ataque cardíaco, desistimos da ideia, por nos parecer um bocado forçado e incorrecto a sua prossecução.
No meio de tudo isto, é necessário acautelar a posição dos trabalhadores. Não sei se isto lhes vai trazer prejuízos. Mas deve-se dizer que não houve devassa. Consideramos caluniosa a forma como certas cartas tratam os nossos nomes, pessoas do Ministério e do IPC. Mais ainda: estivemos alojados pelos trabalhadores, dormimos no monte: uma equipa de cinema ganha dinheiro por isso. Era natural que compensássemos os trabalhadores e atribuímos uma verba — dez contos. Está explicada a origem desse dinheiro. Tal verba fica muito aquém do trabalho dispensado e se eles se podiam queixar era por terem sido mal pagos...
EXTRA - Falemos agora um pouco do teu filme, César Monteiro. Parece-me que «Veredas» constitui uma leitura cinematográfica de determinados textos literários (Maria Velho da Costa e Esquilo), ao mesmo tempo que incide sobre temas da nossa tradição cultural. Essa leitura implica que o teu filme seja, ele próprio, um filme difícil pois os textos em que se apoia não surgem como fáceis de compreender.
JCM - Estou de acordo em que os textos da Maria Velho da Costa são muito fechados, mas não os de Esquilo.
Antes do 25 de Abril, eu era uma figura muito isolada, muito fechada. E via muito cinema estrangeiro: o resultado era o peso do meu lado de intelectual provinciano, que me levava a procurar modelos nos filmes que via. Isto é um fenómeno muito comum na vida portuguesa. Havia uma grande falta de atenção ao que se passava neste País e às manifestações da própria cultura portuguesa.
O 25 de Abril foi decisivo, porque me lançou de uma maneira eufórica e depois mais calma, há reflexão sobre certos veios da cultura popular, sobretudo de cariz rural. Há exemplos muito recentes - Lopes Graça, Giacometti - e ainda a investigação do Carlos de Oliveira, com quem mais aprendi de cinema.
«Veredas» é um filme mais elaborado do que as experiências anteriores embora não esteja inteiramente satisfeito, porque ainda me parece ser um filme de transição.
EXTRA - A sua leitura de uma determinada realidade é feita em dois planos, um sobre a cultura tradicional e histórica e outro sobre o real quotidiano...
JCM - O que me parece é que esses dois planos não são distintos. O conto de Branca- Flor não é tratado de forma feérica, mas realista. Por outro lado, planos à primeira vista realistas, não o são.
O conselho de aldeia de Rio de Onor parte de dados rigorosamente etnográficos. È aí que se introduz a narrativa de Branca- Flor. Mas podia ter continuado essa via, seguindo-os na busca dos motivos da desaparição dos rebanhos.
EXTRA - A presença do Alentejo torna-se marcante. E parece até que surge um pouco inesperadamente. Porquê?
JCM - Pensei sempre que é aí que o gato vai às filhozes. É deliberado: Se tivesse querido fazer um filme mais comercial, podia ter continuado a manter uma imagem de poesia. Mas o Alentejo é a ruptura com isso.
O filme é o trajecto de duas figuras. E é no Alentejo que se separam. Assentando na obsessão do par, do casal, o filme exprime aqui o lugar da separação, da perda, ou pelo menos, o lugar em que há uma transferência em relação ao par. Este continua, sob a forma mãe/filho.
No Alentejo também se continua a história de Branca -Flor, embora eu admita que o publico possa não o perceber. Mas como continua?
Atravessar o rio, significa que ele, o homem, esquece o passado, a sua cultura e o mundo a que pertence. É humilhado (na nora), fica dementado (em cima da árvore), não consegue continuar com a mulher, e tudo isto corresponde ao encantamento na história de Branca -Flor. Por fim, reaparece miraculosamente, para se reconstituir como par, depois da morte da senhora (despojada do filho é rigorosamente só). Acredito nesta coisa do amor, porque as minhas crenças residem no amor. A eventual dificuldade do espectador estará na dificuldade de ligar e relacionar os elementos que lhe são propostos.
JCM - Estou a trabalhar num projecto extraído de 2 contos tradicionais, chamado «Silvestre», candidato ao plano de 78. Mas, na distribuição, ainda está tudo por negociar, no que respeita a «Veredas». O IPC não dispõe de máquina distribuidora eficaz e capaz de competir com os distribuidores privados. Mas a culpa das Condições catastróficas em que o filme foi lançado também devem ser imputadas ao realizador, por querer lançar o filme nesta altura, sem publicidade prévia, o que é puro suicídio.
Aprendi para a próxima
Publicado no jornal Extra, a 1 de Junho de 1978