Entrevista de António Pedro Vasconcelos a João César Monteiro.
Publicada no jornal Expresso, a 27 de Maio de 1978
João César Monteiro Sobre "Veredas":
VOTADO ao ostracismo pelo seu produtor – o IPC que insiste em ser distribuidor dos seus filmes— ignorado pelos críticos , recusado pela Comissão de qualidade, a mesma que, "pela transcendência do tema" considera o "Rei das Berlengas" digno do epíteto e das vantagens fiscais do "filme de qualidade", o que roça o escândalo e a provocação, "Veredas", estreado na semana passada no "Quarteto" devido à exclusiva teimosia do seu autor, parece condenado a uma vocação que não quer: a de se tornar um filme maldito. E no entanto ele é, depois de "Trás-os-Montes" e de "Ruínas no Interior", o filme português que melhor nos poderia reconciliar com um cinema que retoma os filões mais genuínos da nossa envergonhada cultura secular. (A.P.V.)
EXPRESSO - O teu projecto inicial - ou pelo menos o que dele se poderia entender pela leitura da sinopse - era um projecto onde só havia indicações de ficção e que, por outro lado, parecia ter um carácter mais abstracto. Sabendo nós que o filme foi feito ao longo de quase três anos, sujeito a paragens e recomeços, gostaria de saber que transformações sofreu, que levaram inclusivamente a alterar o titulo inicial Amor de Mãe - tema que aliás ainda transparece na segunda parte do filme, mas que deixa de ser a tónica dominante - por Veredas, o que dá desde logo a ideia de uma deambulação não só geográfica como através de várias mitologias.
JOÃO CÉSAR MONTEIRO - O projecto inicial era de certa maneira uma continuação de A Sagrada Família que era um filme equivoco. Por um lado, porque macaqueava ou tentava macaquear um certo tipo de experiências vanguardistas...
J.C.M. — Por exemplo o Garrel. E também um certo tipo de modas. Entretanto, houve transformações políticas neste pais, o 25 de Abril...
EXP —Demo- nos conta disso...
J.C.M. — Demo- nos conta disso e um dos aspectos mais positivos foi o de acabar com o cisma entre o intelectual citadino e, no meu caso particular, completamente isolado e com algumas, tendências esquizoides, e certas camadas da população portuguesa ; nomeadamente as rurais. Para ir mais longe poderia dizer que, no fundo, se trata de um reencontro, mas isso forçar-e-ía a alongar-me em questões de ascendências, movimentos - migratórios, aculturações urbanas etc.
EXP — Mas tanto quanto eu me recordo, na 2.ª parte de Veredas parecem vislumbrar-se um pouco os resíduos do projecto inicial, embora então não tivessem um carácter tão vincadamente político. A historia do homem da nora, por exemplo.
J.C.M. — É a história do tipo que toma o lugar do outro. Isso participa do movimento critico do filme. E é também necessário à história do movimento das águas que atravessa todo o filme. Não vejo que seja tão vincadamente político, será talvez político, mas atravessado por uma grande carga de mitologia crística.
EXP — Está bem, mas nesse sentido, a Catarina Eufemia — aliás o seu culto — também tem a ver com a mitologia crística.
J.C.M.— Sobre isso não tenho a mais pequena dúvida. As romagens anuais atestam-no bem.
EXP — De qualquer modo, foram as transformações, políticas que te levaram a interessar pelo "país real", é isso?
J.C.M. — Era necessário começar a catar filões culturais um tanto esquecidos, como sejam os de raiz popular. Rural evidentemente. A produção cultural do operário, é um kitsch da burguesia. De resto, esse trabalho não é novo. Ele marca quase toda a nossa história cultural e podia citar exemplos relativamente recentes: o Lopes Graça, o Carlos de Oliveira, no principio do século, o Leite de Vasconcelos, antes o Oliveira Martins, etc.
EXP — Mas o Veredas, não deixa de ser um filme com chaves culturais importadas. Refiro-me a referências cinematográficas muito nítidas, pelo menos para um espirito cinéfilo, e é esse trabalho de tentar fazer sínteses sucessivas entre as várias citações, digamos assim, e mesmo entre essa cultura popular e a tua própria cultura que me parece o lado mais interessante do filme, o que não impede que seja, por vezes, o menos bem resolvido.
J.C.M —É evidente. Seria absurdo, e indesejável., varrer todas as aquisições culturais, conscientes ou inconscientes. O que é necessário- é procurar, confrontá-las e, se possível, enriquecê-las nesse confronto. Devo de resto dizer que é extremamente difícil penetrar o significado profundo: e global das raízes culturais campesinas, seja por insuficiências e limitações próprias, seja por que, as mais das vezes, esses veios de ouro puríssimo se apresentam contaminados por elementos estranhos ou espúrios. Finalmente, só um insensato pode ter a pretensão de perceber tudo. Enganam-se aqueles que pensam que a alma do povo é simples ou fácil. Investigá-la é um trabalho extremamente duro. Eu costumo dizer a rir que se fala muito do elitismo de certas camadas intelectuais mas ninguém fala do elitismo, às vezes esotérico, de certas manifestações da cultura popular.
EXP — E como é que tu achas que fizeste, no filme, essa confrontação? Pergunto-te isto porque me parece que, por vezes, a articulação dos dois discursos — o teu e o do povo — é feita de maneira um tanto simplista, como é o caso de certas panorâmicas que ligam os dois personagens centrais ao décor e a outros personagens reais ou servindo-te de burros eu bois que passam pela frente sem que isso pareça ser mais do que um habilidoso expediente narrativo num filme que, pelo contrario, parece recusar, a facilidade. Em todo o caso, como é que a experiência do teu contacto com os locais e com as populações te levou a enriquecer ou pelo menos a transformar o teu projecto? Como é que foi feita a simbiose entre esses dois níveis?
J.C.M.— Omitindo o encontro inicial que, de certo modo, prefigura a história de Branca Flor, suponho que te referes, em primeiro lugar, ao encontro das 2 personagens errantes com o tio Lérias, designado no filme, como "o contador de histórias". Ora bem: trata-se de um travelling combinado com panorâmica e enquadrando inicialmente os dois personagens em movimento, contra um fundo de casas em que um pouco à maneira; de certos pintores primitivos, o Giotto por ex., na perspectiva real é abolida. Daí as figuras terem a estatura das casas.
Era preciso que o homem que racha lenha e as mulheres que fiam recebessem os dois estranhos com surpresa. Eu tinha previsto que a figura da mulher, até pelo insólito do fato, causaria uma impressão mais forte e assim sucedeu. É a passagem da mulher que desencadeia aquela conversa sobre as mouras encantadas e sinaliza imediatamente a influência de duas culturas: árabe, antes da Reconquista e cristã; com a curiosa particularidade de, no discurso do Ti Lérias, haver um movimento oposto; de fora para dentro, no que toca à árabe, de dentro para fora, ao que toca à cristã.
EXP — Deixei-te falar porque estava a gostar da descrição, mas não me referia, como é óbvio, a esse plano que, de resto, acho a muitos títulos admirável, mas a outros planos que vêm depois e que me parecem funcionar apenas como planos de ligação, coisas que na economia do filme se me afiguram preguiçosas concessões à beleza imediata dos locais.
J.C.M. — É muito provável que eu tenha um lado de fotógrafo amador, daqueles velhos fotógrafos que lacrimejavam de contentamento a olhar para o "passarinho".
EXP — Mas não respondeste à questão que eu punha: como é quê tu entendes que se articulou o teu projecto inicial com aquilo que foste encontrando pelo caminho? O que é que liga os vários blocos do filme — a Branca Flor, o Esquilo, o latifundiário e sua família, etc. - coisa que para mim não é muito nítida?
J.C.M.— Quando estava a fazer o filme aconteceu lembrar-me muito das 33 variações sobre uma valsa de Diabelli. Há um modelo inicial que o Beethoven começa logo por subverter alterando os três tempos da valsa numa "falsa" valsa a 4 tempos, para nunca mais se reconhecer, ao contrário da variação tradicional, a matriz temática. Como nota Boucourechliev, não há principio gerador, mas generalizador. Se rigor há nesta obra de Beethoven, não é um rigor melódico mas de estrutura. A célebre 22 ª variação é, por exemplo, um pastiche do "Notte e giorno a faticare" do Dom João de Mozart. Quanto a mim a questão que se deve pôr é se o corpo do filme suporta ou não, é ou não capaz de "digerir" elementos aparentemente estranhos.
J.C.M.—É a obsessão do par. O filme é construído sobre uma série de variações e, metamorfoses desta, obsessão.
EXP — Outra questão , o papel do texto. Nos teus outros filmes eras tu quem normalmente o assinava, mesmo quando te apropriavas do Carrol, do Kafka ou do Rimbaud. Aqui entregas o texto a uma segunda pessoa, e eu penso que ele funciona menos como um comentário descritivo para ter uma função quase musical — como o Bach no filme sobre a Sophia. O que, mesmo assim, me parece ser uma das, coisas mais controversas do filme e pessoalmente acho que das mais irritantes. Ter que ouvir ler, nos limites da respiração, frases como "dormindo e jubilando sobre palhas inexoravelmente encaminhamos o defluxo dos nossos corpos para a untuosidade do coágulo ferruginoso que haveria de religar - nos ao chão" é coisa que não favorece nem o entendimento nem o ouvido.
J.C.M. — Não entreguei o texto a uma segunda pessoa. A Fátima sou eu enquanto jovem passarinha. Só fiz questão que, através do texto, não fossem introduzidas, no filme, um certo tipo de relações dramáticas do género "eles foram para o campo passar o fim de semana e resolveram, a contento, a vidinha sexual", ou favorecesse a criação de conflitos psicológicos individualizados que, no meu ver, teriam o inconveniente de o aparentar ao cinema de consumo pequeno- burguês. E isto é tão verdade para o texto da Fátima como o é para o texto de Esquilo.
EXP— Verdade seja dita que esse perigo não está na imagem...
J.C.M. — E que a imagem recusa permanentemente. É isso sim, um filme de amor — o texto, sendo filme, entrelaça-se amorosamente no seu corpo — e de amor que não é só entre duas pessoas mas, em pé de igualdade, entre pessoas e coisas, entre pessoas e deuses, de molde a que essas relações estabeleçam um acordo profundo e profundamente harmonioso entre tudo o que existe, entre tudo o que, abruptamente foi arrancado ao coração dos homens.
Talvez o filme seja muito marcado pela nostalgia do velho sonho arcádico de uma perdida idade do ouro.
Não sei. Gostaria sobretudo que servisse, como serviu para uma jovem que nele fez de Branca Flor, para ajudar um certo número de pessoas a descobrir que vivem uma "vida de plástico, e que ainda é possível cumprir-se a promessa de inventar um país , Diotima.
"A travessia do Alentejo é a travessia da dôr"
EXP — Mas então porquê o episódio do Alentejo? Ai há uma descrição muito clara das relações familiares e das relações da classe, e do papel da Igreja e da GNR. Aí são informações muito concretas, e tratadas de um modo que, de súbito, aparenta o filme a essa degeneração da arte burguesa a que te referes.
J.C.M. — Isso é, de certo modo, verdade. No Alentejo optei pelo recurso a formas mais grosseiras e convencionais, com a agravante de eu não ser aquilo que se designa habitualmente por um "metteur-en-scène", ou seja; sou incapaz de fazer um cinema que repouse sobretudo na criação de tipos, jogo de actores, engenho cénico, etc.
Isto entanto, para além do fracasso e de uma certa pobreza no tratamento dessa zona, ela é, quanto a mim, a zona mais enigmática do filme, não só por ser a zona em que o par um ao outro se perde, se separa, como, e sobretudo por, dentro da lógica das variações não figurativas de que atrás falei, não ser fácil reconhecer que é a continuação da história de Branca Flor. Na morfologia do conto tradicional, como diz Propp, as funções das personagens representam as constantes, podendo tudo o resto variar. Atenhamo-nos ao conto: o par é perseguido pelas forças demoníacas e o rapaz atingido por um malefício que faz com que se esqueça de Branca Flor. Esta consegue desencantá-lo e, tal como no filme, tudo acaba em bem. Portanto, o Alentejo é o lugar da separação do par mas, antes do Alentejo, há a sequência da travessia do rio Lima, a metamorfose juvenil do par, o barco vazio, parado, só com as sombras dos personagens a afastar-se. Desde a Geografia de Estrabão se sabe que o rio Lima também era chamado de Lethes, isto é: o rio da morte, do esquecimento. Essa mitologia fluvial continua viva na memória popular. Crê-se ainda que quem atravessa o Lima se esquece do passado, mas se quisermos ir à nossa cultura erudita do séc. XVI podemos encontrar várias alusões a isso na poesia de Diogo Bernardes. Não é por acaso que no texto V de Maria Velho da Costa, inserto no filme, se cita deliberadamente um verso da Carta XIV de Bernardes referindo-se ao rio "que de cousas passadas desobriga".
EXP — Não sei porquê, creio que pelo equilíbrio do enquadramento, esse plano trouxe-me à lembrança uma quadra de Pessoa em que ele diz que "nunca ninguém se perdeu/tudo é verdade e caminho", mas isso é capaz de ser um preciosismo de interpretação que contradiz a tua intenção.
J.C.M.— A travessia do Alentejo é a travessia da humilhação, da dor, mas poderias ter objectado que não há perda, mas transferência da relação amorosa: Mãe- filho. Eu não queria falar disso porque há ai uma descarada influência sternbergiana. Estou agora a lembrar-me da "Vénus Loura". Peço desculpa, mas não foi consciente. Aliás, aqui há tempos, o Manuel de Oliveira perguntou-me o que era o filme e eu respondi-lhe que era um filme de amor, mas não de perdição, de salvação.
EXP — O que desorienta um bocado, a seguir ao plano do rio é não ser o mesmo par.
J.C.M. —É o mesmo par, rejuvenescido. O texto diz: "devínhamos então muito jovens..." É a mesma criaturinha que incita o pastor a tocar com a convicção de ter todo o tempo e todo o espaço, logo sem limites, que mais tarde fica um pouco perdida, no abrigo de palha, enquanto o par se afasta, e que aqui encontra o seu lugar e se constitui como par. Quando se pensa um pouco no amor e na morte é- se levado a acreditar nestas coisas.
EXP — Para voltar ao par. O par recompõe-se no filho, que por sua vez é cruelmente arrancado à mãe. Devo dizer-te que é, para mim, a sequência mais impressionante do filme, a única que verdadeiramente torna aquela harmonia precária: a tensão criada ao longo do plano em que os três homens vão pedir pão e abrigo, é arrepiante, e não é pelo anúncio do lobo na banda sonora. A partir daí as possibilidades do par parecem esgotar-se.
J.C.M. — Foi tratada um pouco à maneira da história do Capuchinho Vermelho. A partir do momento em que a mulher é despojada do filho, só lhe resta a morte. No entanto, eu quis que o filme acabasse com uma ressurreição: a ressurreição do par. A mulher deitada em posição de parturiente, o homem emergindo como um falo entre as pernas dela. Palavras de salvação que parafraseiam as da liturgia do credo que ouvimos, antes, na missa: ressurgiu entre as mulheres, etc. Precisamos todos de nascer de novo.
EXP — Não quero eu outra coisa. Mas para voltar ao entendimento do filme, insisto que a sequência do Alentejo dá ao publico a ilusão de poder interpretá-lo de uma maneira muito menos simbólica, muito mais directa, como uma narrativa tradicional. Outro elemento que, ora provoca ora contraria essa tentação é o texto que por vezes da informações como tu próprio citaste na cena ao segundo banho — "devínhamos então muito jovens" — mas que funciona quase sempre muito mais como uma melopeia, de forma encantatória. E então podemo-nos perguntar: porquê o texto, porque não música ou ruídos? Porque não, é suficientemente claro que aquilo não está ali para explicar coisa nenhuma, que é uma divagação poética sobre uma imagem poética, digamos assim. Isso cria algumas dificuldades. É um tipo de risco que tu corres conscientemente, mesmo provocatoriamente, ou estás-te nas tintas?
J.C-M. — Não me estou inteiramente nas tintas. Essas são questões que me preocupam, mas só posso responder-lhes com dúvidas. De resto, há coisas que eu próprio não percebo muito bem. Por exemplo: escrevi umas pequenas notas para serem distribuídas à entrada das sessões, e, numa delas, acerca da dança da raposa, informei, de acordo com informações que me haviam fornecido, que a palavra mirandesa "grilhos" significava grilos ou grelos. Entretanto, um espectador anónimo teve a bondade de me informar que "grilhos" significa pintainhos. É este um caso, infelizmente raro, em que o realizador aprende alguma coisa com o publico.
EXP. — Eu não digo que um filme não deva, e isso o distingue dos imbecis, deixar transparecer perplexidades e enigmas e que o espectador não deva estar diante dele como tu diante desses ritos, cujo sentido com o tempo, se tornou enigmático. Digo é que, por vezes, a lógica e o sentido de certas alusões, para ti evidente, se torna secreta.
J.C.M. — Será legitimo ou não transportar segredos para um filme? Será legitimo ou não tomar crípticos certos elementos do discurso? Talvez o filme seja vincadamente judaico, no sentido problemático do termo, e se procure com isso preservar algo de ameaçado, como sejam pessoas, comunidades, culturas, quiçá um país, quem sabe.
EXP. — Não serei eu a contestar que, na senda do Gide. Retomada depois pelo Godard, "se deve meter tudo num romance" ou num filme. Do que me queixo não é que dês falsas pistas ao espectador— desde o Hitchcock sabemos que ninguém o manda fiar-se no que vê —, mas que misturando tu o cinema de prosa — reportagem, ficção, realista, etc. — e o de poesia, para usar uma definição do Pasolini, lhe dês a ilusão de poder interpretar de um modo prosaico todo o filme.
J.C.M. — Mas isso não se deverá ao facto do espectador de cinema estar muito condicionado por certos modelos narrativos, como o leitor de literatura está também condicionado por uma tradição do romance burguês que vem do séc. XIX? E se eu disser que, guardadas as devidas proporções, o meu filme poderá estar mais próximo de uma narrativa do séc. XVI como a "Menina e Moça", por ex., ou do "Ulisses" de James Joyce? E não é por acaso que fui buscar dois livros construídos a partir de um itinerário onde, nos mais diversos registos, vem inscrever-se as mais incríveis peripécias e os elementos mais dispares.
Fora isso, não tenho a mais pequena dúvida que há, no lume, imensos, erros, indecisões, falhanços disto ou daquilo.
EXP — Falemos da cena sobre o texto do Esquilo. È um dos blocos do filme. Magnifico em si, de acordo. Mas tu és de algum modo responsável pelas intenções que se lhes possam atribuir. Posso-te dar o exemplo de um espectador "erudito"- que me dizia que essa cena, tal como tu a filmas, podia ser entendida como um apelo à conciliação de classes. E porquê? Trata-se no filme, do momento em que se estabelece, pelo diálogo, a passagem do Norte para o Sul, através de uma série de campos - contracampos entre a Deusa Atenas e as Fúrias. Ora tens que admitir que há elementos de identificação muito claros entre duas zonas geográficas do País que, infelizmente, na nossa história recente têm suscitado fortes oposições políticas; a Manuela de Freitas é a Deusa Atena, de acordo, mas é enquadrada numa zona montanhesa do Alto Minho em que os espigueiros, numa espantosa transposição, funcionam como a Acrópole, mas não deixam de ser aqueles espigueiros muito concretos onde se guarda o milho que é a principal riqueza da região: as Fúrias por sua vez são representadas por camponeses alentejanos e enquadradas na planície alentejana. Porquê então o texto de Esquilo que historicamente representa os fundamentos de uma nova justiça ordenada pela razão e submetida ao interesse democrático, interpretado por camponesas alentejanas, que representara as forças retrógradas conquistadas pela voz e pelos argumentos de Atena e que são persuadidas a abandonar a cólera e o desejo de vingança para aceitarem acolher-se a Atenas e a participarem nos trabalhos fecundos da reconciliação? Tanto mais que o plano seguinte, muito bonito para cúmulo, nos mostra as camponesas a trabalhar.
J.C.M. — Admito que é uma interpretação possível, mas não houve da minha parte qualquer espécie de ambiguidade. O que me interessou foi, não tanto essa identificação, como a vocalização coral. Pareceu-me que as alentejanas podiam, num texto de origem grega, introduzir vocalmente um elemento litúrgico de raiz moçárabe. O texto de Esquilo tinha um significado político muito- preciso: o da Fundação do Areópago ateniense portanto, tinha a ver com a fundação de uma nova justiça, mais humana, mais democrática, por assim dizer. Nós podemos saber que os deuses, gregos eram antropomórficos, criados à imagem e semelhança das necessidades e anseios mais profundos da população ateniense, por um lado, e, por outro, que há no Teodiceia esquiliana, uma evolução num sentido monoteísta. É fora de dúvida que Atena incarna esse desejo de progresso.
Todavia, a posição desse teu amigo parece-me um tanto preconceituosa. Se reparares bem, o bloco esquiliano começa depois da travessia da ponte (e quando eles atravessaram a ponte...), que sinaliza a passagem para os domínios do sagrado: daí a fonte, com toda antropologia de imaginário que lhe quisermos associar, e cuja reminiscência aparece desenhada na couraça de Atena, em clara oposição à montanha onde o coro vem inscrever a sua ladainha rancorosa.
É evidente que as propostas de Atena são propostas de apaziguamento, mas são propostas de apaziguamento no sentido da criação de um mundo mais equilibrado e justo. Ora, para mim, esse mundo só é possível com a concertação harmoniosa de todas as forças produtivas, o que é precisamente o contrário da reconciliação de classes, antes visa a sua abolição. Parece-me perigoso "actualizar" politicamente um texto que dista de nós 25 séculos. Nele, pela própria evolução da Teodiceia esquiliana, a que atrás me referi, podemos vislumbrar, isso sim alguns apontamentos de cristianismo primitivo o que, à distancia de cinco séculos não é nada vulgar, mesmo tratando-se, como se trata, de um poeta prodigioso. A questão está, pois, em saber se o filme apaga ou acentua os traços históricos que o texto contém.
António Pedro Vasconcelos
Publicada no jornal Expresso, a 27 de Maio de 1978